quinta-feira, 2 de junho de 2011

Para lembrar de você...

Ela não foi bailarina. Na realidade, nunca entrou num teatro. Não me viu dançar, mas sabia que eu fazia ballet. A gente não tinha o mesmo sangue, mas isso nunca importou. Assim como pai e mãe é quem cria, avó é aquela que dá carinho e se preocupa com a gente.

Lembro de ver a vó Belmira fazer chá com raspa de chifre queimado, só não recordo a doença que eu tinha nem o gosto da bebida. Lembro da vez em que me ensinou a fazer simpatia - "Três, dois, uma, íngua nenhuma" - para acabar com as ínguas que me atormentavam naquelas férias. Lembro de escutá-la conversar com o papagaio e o periquito com quase duas décadas de idade. Lembro das risadas ao me ver fugir das borboletas.

Lembro do cachimbo que ela pitava no cantinho da casa já no fim do dia. As demonstrações de afeto eram diferentes. Nada de beijos e abraços, manifestavam-se por meio dos pães-de-queijo e petas que ela fazia apenas para agradar a gente; o café também, porém, desse eu não gostava muito. Era ralinho e doce demais para o meu gosto. Mas isso não podia revelar para a vó.

Lembro de vê-la chamar as galinhas - "Tititititi" - que iriam para a panela e de me chamar de Julia, quase sem pronunciar a letra i. Lembro de ela mostrar os ovos com casca verde e azul, algo que impressiona qualquer criança boba da cidade. Lembro de ela queimar o algodão e misturá-lo com borra de café para estancar o sangue do dedo do meu irmão, cortado imprudentemente por facão. Lembro de ela cuidar do vô octogenário na cadeira de rodas, numa casa sem energia elétrica, sem água encanada e longe de qualquer recurso.

Lembro de muitas outras coisas... Do adeus no portão, com lágrimas nos olhos, porque era hora de voltar para São Paulo. A fé era das mais bonitas! Até quando pôde, carregou o tercinho nas mãos para rezar. Certa vez, contou-me, o padre disse que ela não precisava ir à missa tantas vezes por semana. Então, respondeu: "Vou porque quando eu estiver ruim e não puder mais ir, Deus vai me perdoar". Não tenho dúvida de que o perdão foi concedido.

A vó queria ter aprendido a ler e escrever. "Uma vez veio a professora e a mamãe mandou a gente pra escola. Mas só durou dois meses. Depois, ela foi embora. Pedia: 'Mamãe, deixa eu ir para a escola'. Mas não tinha dinheiro. O tiquinho (pouquinho) que aprendi treinei bastante. Consigo assinar meu nome e ler alguma coisinha", falou um tanto chateada.

Pensei em escrever esse texto há alguns dias, enquanto ela ainda estava na Terra; algo do tipo Canção (nesse caso, palavras) pra Você Viver Mais. Não deu. Era hora de partir.
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